CONTOS DE SOLIDÃO - Sem olhar para trás

Durante muito tempo fui uma pessoa dócil e boazinha, daquelas que não conseguem dizer um “não”. Na escola, perdi a conta das vezes que abri mão do meu lanche para os colegas e segui com fome. Deixava de brincar no parque, quando criança, para não sujar as roupas, e de sair com as amigas para ir aos bailes da escola, na adolescência, para não preocupar meus pais.

Enquanto as meninas da minha idade se ocupavam com as roupas da moda e maquiagens, geralmente ficava em casa. Quando não estava estudando, me refugiava na literatura, que me permitia viajar pelos lugares mais distantes e viver as mais loucas aventuras.

Conheci Leônidas, o meu primeiro namorado, quando tinha 18 anos. Eu era tímida e insegura como uma Gata Borralheira, e ele, exatamento o contrário! Me acostumei que ele decidisse sobre minhas roupas, os filmes que assistíamos, os amigos e os lugares que visitávamos. Apaixonada, aceitava suas imposições sem protestar, com medo de perdê-lo.

Depois que me formei em Pedagogia, comecei a trabalhar com educação infantil. Queria atuar também no ensino médio, mas Leônidas me fez desistir da idéia. Nos casamos seis meses depois da formatura, e a partir daí conheci o inferno! As crises de ciúme de Leônidas, que antes me envaideciam, por considerar uma prova de amor, passaram a me sufocar. - Por que você se atrasou hoje, Catarina? Quem era aquele cara com quem você estava falando na saída da escola? Inútil negar que tinha um amante!

Ele passou a me bater. Foi nessa época que os meus sorrisos desapareceram dos lábios. As surras que eu sofria deixavam marcas profundas no rosto, no pescoço e no corpo, mas atingiram principalmente a minha alma, durante 10 longos e intermináveis anos!...

Uma manhã acordei de um pesadelo terrível: Leônidas tinha me matado com sete tiros, e eu estava estendida no chão, em meio a uma enorme poça de sangue. Suando frio e aos prantos, naquele momento decidi que cometeria um crime perfeito. “Quem tem de morrer é ele!”, pensei. Comecei a planejar a forma de matá-lo. Ele era cardíaco e hipertenso, e nunca ligou para dieta. Estava vinte quilos acima de seu peso e relaxava nos horários de tomar o remédio. Era sempre eu que o alcançava os comprimidos!...

A noite chegou e me esmerei no jantar. Preparei leitão assado, salsichão, e salada de maionese, que ele adorava! Ele comeu até se fartar, sem ligar para o excesso de calorias que estava ingerindo.

Como previ, de repente ele começou a ficar vermelho, com falta de ar, e a reclamar de forte dor no peito. Ele me fazia sinal para que alcançasse o remédio, mas eu não movi nenhum músculo sequer! Com os olhos arregalados, ele continuou com as mãos estendidas, agora com um olhar de quem tinha entendido tudo, estrebuchando até cair morto.
                                                              

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Ao constatar que tinha me livrado dele, gritei e toda a vizinhança me acudiu. Eu soluçava, me jogava no chão e me abraçava ao seu corpo, aparentando desespero. “Coitada!”, diziam. “Ela adorava aquele desgraçado, apesar de tudo!”, pensavam.

Três meses se passaram. Já estava na hora da segunda parte do plano. A própria família de Leônidas me aconselhou a viajar para um retiro, para me curar da "depressão"!... Cheguei em casa e preparei as minhas malas, apressadamente. Lembrei que na Suíça, agora, é inverno. Retirei cuidadosamente o quadro de Di Cavancanti, acionei o segredo do cofre, peguei os dólares e fui embora para sempre, sem olhar para trás!...








































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