CONTO - Onde estão as flores da dona Vicentina?

A minha melhor amiga sempre foi a Afonsina, que estudava na mesma escola, só que um ano na frente. Era o início dos anos 50 e a cidade era bem mais pacata do que hoje. Sim, porque naquela época, com essa idade, ainda brincávamos de bonecas! Bons tempos...

A Afonsina ficou órfã muito cedo e foi criada pela avó Vicentina, que tinha múltiplos talentos. Era uma típica senhora “prendada”, como se dizia na época. Ela dava um show na cozinha, fazia doces e compotas caseiras como ninguém e ainda era exímia no tricô, crochê e bordado...

Porém, o que mais causava admiração pela dona Vicentina, além dos limites do portão, eram as orquídeas que cultivava... mais do que as rosas, que além de adornar o jardim, tinham o poder de atrair abelhas e borboletas. Ah, e cigarras também!

Por sinal, a Afonsina sempre contava que, quando o sol da manhã irradiava luz, não raro assanhava as cigarras, que vinham cantar na sua janela. Faziam o papel de despertador ecológico, só que com um toque poético...

Na época, frequentava a casa dessa minha amiga, especialmente ante das provas de matemática... Por isso, perdi a conta das vezes em que acompanhei os cuidados da avó dela com suas relíquias vivas, coloridas e perfumadas.

Depois que terminamos o primário, “adolescentamos”, como diria o nosso professor-poeta Aderbal, amadurecemos e a vida de cada uma seguiu seu curso. Soube bem mais tarde que com a morte de dona Vicentina, com setenta e poucos anos, os parentes “reapareceram” e, depois de muita briga pela herança, a casa foi finalmente vendida... Afonsina pouco depois casou e foi morar no Rio. Perdemos o contato, infelizmente.

Essa semana senti uma nostalgia me apertando o peito. Esse meu reumatismo vive me pregando peças, mas ontem acordei e decidi dar uma volta. O meu filho e a minha neta vivem se oferecendo para me levar para lá e para cá, mas eu não quis incomodar. Chamei um táxi e pedi para me levar no bairro onde morava a minha amiga de infância. Fiquei rememorando, respirando passados... Vida correu, tropeçou, caiu e se levantou, assim como eu. Águas rolaram, rolaram, rolaram por debaixo da ponte...

Enfim, chegamos defronte à casa de dona Vicentina e da minha amiga Afonsina. Desço devagar, me amparando na porta do táxi, e o meu coração começa a bater mais forte. Quantos anos! Senti as lágrimas querendo transbordar, mas segurei o máximo que pude. Mesmo assim, senti que o olhar do taxista identificou a minha emoção, discretamente.

O muro está alto e não há nenhuma abertura visível para ver se sobrou alguma coisa das flores do passado. Tomo coragem e me dirijo a um homem que passava na hora, para saber quem mora lá. Conto das orquídeas, das rosas e seus perfumes...

Com olhar malicioso, ele me responde que ali, hoje, as únicas flores existentes são as que desabrocham com as luzes  vermelhas da noite... Décadas se passaram. Vida correu. Tudo mudou...

* Ilustração: Freepik





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