CONTOS DE SOLIDÃO - Dona Esperança
Sentada no piso frio da calçada de uma das principais ruas da capital,
dona Esperança podia ver todos que passavam na altura da cintura. Desde os mais
apressados, a caminho do trabalho ou de casa, carregando os filhos ou sacolas
pela mão, até os que passavam sem a mínima pressa, arrastando os pés. Os
cabelos semi-grisalhos, as rugas profundas, a obesidade e a aparência geral de
desleixo não são um mero artifício para pedir esmolas. Ela realmente está ali
para mostrar seus pés disformes, cheios de feridas, que de tão grandes chocam
os passantes mais sensíveis.
Ao mesmo tempo que causa olhares de repulsa em alguns, ou de
indiferença, em outros, é com a piedade dos passantes que ela conta para
sobreviver. Para ela, que se apega àquela vida miserável com unhas e dentes,
sem ao menos entender a razão, algumas poucas moedas podiam significar um café
com leite, acompanhado de um sanduíche, nos dias de maior sorte, ou mesmo um
pão com manteiga para aplacar a fome. Uma fome que atravessava suas entranhas e
chegava até a alma. Fome de vida, de alegria, de um prazer que há muito deixou
de ter!...
E pensar que já foi uma mulher bela, disputadíssima pelos ricos clientes
do bordel, há décadas atrás. Chegou a ser leiloada numa grande festa privè,
promovida por um manda-chuva político. Naquela época, não faltavam jóias e
dinheiro, e até ganhou uma casa bem confortável, de um figurão que tinha caído
de amores por ela. E chegou também a ser pedida em casamento por um
farmacêutico cinquentão. Tímido, viúvo e apaixonadíssimo, ele queria fazer dela
sua esposa.
- Esperança, você é a esperança da minha vida! Case comigo e seja a mãe
dos meus filhos!
Mas ela ria, ria... Imagina se ela, no auge dos seus 20 anos, iria se
enfiar atrás de um balcão de farmácia, quando tinha o mundo a seus pés?!... Que
simplório!, pensava.
Mas o tempo foi passando, e as noitadas, as bebedeiras e as sucessivas
doenças venéreas começaram a deixar suas marcas naquele corpo, até então
perfeito. Aos poucos, foi perdendo tudo o que tinha, inclusive aqueles que considerava
amigos. Todos fugiram como ratos num naufrágio!...
Mas foi o crack que a levou definitivamente para o fundo do poço. Já
nessa época, suas pernas e pés ficaram irremediavelmente deformados, e passou a
mendigar pelas ruas da capital. Dormia numa casa abandonada, com outros
excluídos como ela. À noite geralmente chorava, e pensava que podia ter dado
outro rumo à sua vida, não fosse a vaidade e a ambição. Tinha 40 anos, mas
aparentava mais de 60...
Mas num desses dias em que ela estava em frente a uma galeria comercial,
com frio e fome, e com a caixa de papelão à espera de uns parcos reais para
seguir vivendo, eis que surge um homem bem vestido, calvo, que a olha no fundo
dos olhos.
17
- Esperança! É Você mesma?!...
Nesse momento, Esperança devolve o olhar e reconhece o farmacêutico
José, profundamente envergonhada.
- O senhor está enganado! O meu nome é Maria... Maria da Conceição...
- Não, não, eu jamais esqueceria esses olhos, Esperança!... Meu Deus!
Venha comigo, você está precisando cuidar dessas feridas! Eu vou te levar até a
minha farmácia...
Os olhos de Esperança se encheram de lágrimas, que ela não conseguiu
conter. Bastante constrangida, ela aceitou ser conduzida pelo farmacêutico. Ele
morava num bairro distante dali, no piso superior da farmácia. José a fez tomar
banho e vestir roupas dele, que curiosamente serviram bem. Ele tinha engordado
também, nos últimos anos...
Enquanto ele servia uma refeição à Esperança, que não queria acreditar
no que estava acontecendo, ela foi contando sobre os excessos, as drogas... Ele
ouvia tudo atentamente, comovido. No dia seguinte, ele saiu para comprar
roupas novas para Esperança, bem coloridas, como ela gostava.
E nos dias que se passaram, José cumpriu o que prometeu. Os dois sabiam
que ela não tinha muito tempo de vida, pois estava bastante fragilizada, mas
preferiram não tocar no assunto.
Uma noite, quando Esperança ardia em febre, e José estava sentado ao pé
da cama, como sempre, finalmente Esperança falou.
- Nunca pensei que existissem pessoas como você nesse mundo, José!
Depois de eu ter rejeitado você, poderia ter se sentido vingado, como tantos
outros...
- Não, Esperança! Você foi como um cometa, que apareceu num momento
muito especial da minha vida, e fico feliz em poder estar aqui, agora, com
você... José pega as mãos de Esperança, que as aperta fortemente.
- Muito obrigada por tudo, José!... Eu nunca te disse, mas sempre me
lembrei de você com saudades... Você foi o único que me tratou como gente... Se
eu pudesse voltar no tempo...
Mas subitamente ela parou de falar. E o farmacêutico José, que sempre
foi tão solitário, chorou por muitos minutos ao seu lado... Tinha reencontrado
o seu amor e perdido de novo...
Comentários
Postar um comentário