Conto - Memórias do mar
O mar sempre me causou encantamento. O ondular das águas, o
leve ruído produzido pelas ondas, no encontro com a areia, a chegada de um
siri, trazido à beira-mar, o céu azul, pintado por nuvens brancas, as aves
aquáticas, os morros, os barcos ao fundo... É como se me transportasse para uma
ilha deserta, aberta dentro de mim mesma. Fecho os olhos e aspiro o cheiro da
água salgada, inconfundível.
Quando o sol nasce e a praia ainda está praticamente deserta,
com poucos veranistas, gosto de apreciar a movimentação dos pescadores com suas
redes e barcos coloridos, conferindo os peixes e se preparando para a venda do
dia. O aroma do peixe fresco me faz antever deliciosas e suculentas receitas
para degustar à mesa, com a família, ou amigos, de preferência acompanhadas de
um vinho de boa safra...
É incrível constatar que no mesmo espaço, na areia, convivam
realidades tão distintas. A praia pode
ser um lugar paradisíaco para amar, relaxar, descansar e até para não pensar em
nada, esvaziar a mente... Tem os que só querem um agito com os amigos, “caçar”
nas areias, xavecar, comer e beber até cair...
E há ainda a galera do surf, deslizando com suas pranchas em busca da
melhor onda, desafiando a natureza bravia e indomável do oceano. Uns desfrutam
das belezas do mar, outros buscam a sobrevivência. Próximos e distantes ao
mesmo tempo.
E é por isso que hoje decidi acordar mais cedo, pegar a
cadeira de praia, o guarda-sol, o chapéu de palha e ir de encontro ao mar.
Quando acordei e abri a janela, vi esse céu, tão azul, que não teve jeito. Foi irresistível. Lembrei daquela lenda, a das
mulheres atraídas pelo boto, e ri
sozinha...
Não sei explicar, mas sempre que me sinto sem energia,
precisando recarregar as baterias, lembro do mar... Tenho que concordar com o
saudoso Dorival Caymmi, de que “o mar quando quebra na praia é bonito, é
bonito...” E hoje me deu muita vontade de sentir o mar, de pegar um pouco dessa
força indomável para mim.
Não sei bem... Acho que é a maturidade chegando, como o
doloroso processo da lagarta até sair do casulo e se transformar numa
borboleta...
Olha lá o Zeca Peixeiro! Mais de três décadas tirando o
sustento da mulher e dos quatro filhos dessas águas! Tem uns quarenta e poucos anos de
idade, mas aparenta bem mais... Ele e os colegas têm conseguido menos peixe nos
últimos tempos, por causa dos barcos industriais. Eu, que moro aqui há tantos
anos, vejo com tristeza essa situação. Vou ver o que ele trouxe hoje...
- Bom dia, dona Mara! A pesca não anda muito boa, mas
separei sardinha “da hora” pra senhora! Aproveita!
- Me vê dois quilos, Zeca! E como
anda a Lurdes e os meninos?
A Lurdes andou meio adoentada, com
dor na coluna, mas tá melhorando... Os mininu
tão crescidinho já, mas com saúde, que é o que importa. Eu é que ando meio
desanimado dessa vida...
- Mas por que, seu Zeca?
- Ah, dona Mara, tá
difícil... Quando eu era pequeno, meu pai sempre contava que desse marzão de
Deus a gente tirava tudo. Naquela época, se tinha fartura. Mas hoje... O jeito
vai ser esperar a temporada da tainha pra botar a dívida do mercado em dia e ver
se sobra uns troquinho...
Crédito da foto de Barra Velha, Norte de Santa Catarina: Rodrigo Philipps / Agência RBS
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