Conto - Eles chegaram! *

O dia mal tinha amanhecido, mas o pequeno vilarejo já estava acordado. Na feira livre, os vendedores já gritavam as pechinchas do dia, desde o peixe fresco até as verduras, legumes e frutas mais viçosas. Donas de casa de lenço na cabeça e sacolas de pano examinavam atentamente a qualidade dos produtos, comentando as ofertas umas com as outras. De repente, um grupo imenso de pessoas adentrou o vilarejo, numa espécie de invasão silenciosa. Homens e mulheres, velhos, jovens e crianças de cabelos negros e lisos e tez amorenada caminhavam de cabeça baixa, andar arrastado, mas contínuo. Eram indígenas, expulsos de suas terras pelos posseiros, mineradores capazes de matar ou morrer por uma pepita de ouro. 

O sofrimento estava estampado em seus rostos, assim como a desesperança no olhar. Muitos não conseguiam segurar as lágrimas. À medida em que se aproximavam, uma onda de medo tomou conta da população. Eles estavam sujos, com roupas rasgadas, e haviam muitos feridos entre a multidão de retirantes. Muitos os olhavam com repulsa. Ao descerem na cidade, uns poucos separaram moedas para alimentar as crianças famintas, mas não havia muito que pudessem comprar, tampouco leite...

Em poucos minutos, eles se espalharam pelo vilarejo, pela feira, pelos poucos restaurantes e padarias. Muitos sentaram nas calçadas e choraram copiosamente. Falavam uma língua desconhecida, elevando as mãos aos céus, como se não entendessem o porquê de tudo aquilo. Se sentiam amaldiçoados e abandonados pela sorte. Alguns comerciantes abriram suas portas, mas outros os espantaram como se fossem cães sarnentos, lançaram pragas... 

As mães imploravam por comida para seus filhos, mas a população local como que sumiu por encanto. Correram para as casas, apavoradas, puxando os filhos pelas mãos... "Eles chegaram! Depressa, fechem as janelas e portas! Bando de vagabundos!", vociferou uma velha aldeã, insensível à tragédia dos índios. Lembro cada detalhe daquele dia. Foi uma das minhas primeiras experiências como voluntária daquela organização não governamental. Quando cheguei à vila para comprar legumes e chás, senti um aperto no peito. 

Lágrimas escorreram pelo meu rosto ao ver a dor e a injustiça sofrida por aquele povo, que um dia já foi o dono absoluto desse território, muito antes da chegada dos colonizadores “civilizados“, com a sua ambição desmedida e sede de poder... De repente, avistei um menino de uns cerca de quatro anos no colo de uma mãe aflita e perguntei o que aconteceu. "Mataram o meu homem! Mataram o meu homem! Homem branco acabou com aldeia, queimou tudo, até criança viva! Um horror!!! Não temos mais casa, nem comida, nem nada! O que vai ser da gente?!", pergunta a índia, num português quase ininteligível.

Estendi as mãos em solidariedade os levei para o chalé simples onde morava. Uma sopa quente, um banho e umas roupas limpas é tudo o que eles precisam agora, pensei. Eles ficaram por lá uns 15 dias, até recobrarem as forças. Depois a índia se foi carregando o filho nos braços, com um sorriso de agradecimento. Nunca mais os vi. Já se passaram mais de 30 anos, mas a imagem daquele dia terrível não sai da memória. Se você tiver notícias deles, me avise, por favor!
* Versão atualizada, publicada na edição de 17 de abril no Jornal do Vale do Itapocu. Texto original publicado no blog literário Letras et Cetera, em 15 de junho de 2010.

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