Conto - MARIÁ MARICÁ
Sim, Mariá Maricá nasceu em berço de ouro. Não propriamente
“de ouro”... Digamos que ela veio ao mundo em situação privilegiada, comparativamente
à maioria das meninas de onde morava. Fazia
parte de uma das famílias tradicionais de Goiânia. Hoje a gente diria que era
de classe média alta. Estudou nos melhores colégios da capital, frequentava as
altas rodas. Era a única filha mulher. Nasceu temporona, “rapa do tacho”, lá
pelos idos de 1930.
A atendiam em todas as vontades. E como se não bastasse, foi
agraciada pela beleza, o que facilitava para ser bem aceita no meio familiar e
social. Como resistir a um pedido daquela criaturinha tão graciosa, doce e
sorridente?
E quando se sentia
aborrecida com alguém, ou alguma coisa, gritava, batia pé, fazia
chantagem emocional e até simulava doença. Se fazia de vítima e invertia tudo,
de modo que o outro lado sempre levasse a culpa. Não admitia ser contrariada
pelos irmãos e primos, que se irritavam com os xiliques de menina mimada. Em
vão tentavam abrir os olhos dos pais e tios. Ninguém acreditava. Incentivavam a
personalidade e independência da garotinha. Atribuíam as queixas a ciumeiras de
crianças.
“Parem de implicar com a menina! É o jeito dela, não faz por
mal... Vocês, que são mais velhos, deveriam entender a pobrezinha... Ela está
inconsolável agora, diz que adora vocês e até já esqueceu a briga que tiveram
com ela...” Inútil argumentar, sempre
passavam a mão na cabeça dela.
Lembrando de alguns episódios passados, dava para ver que
era uma menina muito esperta desde a mais tenra idade. Ardilosa. Pequena ainda,
Mariá Maricá fazia valer suas vontades. Era difícil resistir àquelas feições de
anjo, ao olhar suplicante e à voz melosa, quando queria algo. Sabia manipular
muito bem as pessoas à sua volta.
Aprendeu a dissimular para tirar vantagem. Do tipo que arranha e depois
esconde as unhas, sabe como é? Pois é, ela era assim... Fazia amizades por
conveniência. Não dava ponto sem nó.
Na escola, era a queridinha dos professores e o terror dos
coleguinhas. Na hora do recreio, não admitia perder nas brincadeiras. Quando
acontecia, atirava areia no rosto das outras crianças, batia nelas, arrancava
seus brinquedos e os atirava no chão, pisoteando. E quando era questionada pelo
mau comportamento, fazia cara de choro e jurava de pé junto que não tinha sido
ela. Acreditavam, é claro...
Agora, é preciso reconhecer, Mariá era estudiosa. Tinha conduta
exemplar em sala de aula e obtinha as melhores notas. Para os professores, era
a aluna perfeita. Inteligente, captava rápido o conteúdo e apresentava uma
especial habilidade para aprender línguas. No Ginásio, se vangloriava de ser a mais paquerada
da escola, mas tinha um rapaz, o Bernardo, que não gostava do jeito esnobe e
arrogante de Mariá. Por ironia do destino, ela gostava justamente dele.
Desesperadamente.
Quando terminou o Ginásio, não faltaram pretendentes para a
levar ao Baile de Formatura. Eu era o maior amigo dela, que ela fazia de
gato-sapato... Mas ela queria o
Bernardo, só o Bernardo! Por isso, se arrumou linda para o baile, decidida a
convidá-lo para dançar. E daí que moça não convida? Ela era Mariá Maricá, não
se submetia a regras!
E eis que surge Bernardo, acompanhado da Rosa... Atônita, Mariá
não conseguia entender como ele escolheu outra pessoa que não fosse ela. “Eu é
que deveria estar ali, no lugar dela, dançando com ele! Sou muito mais bonita,
rica e inteligente! Ela não passa de uma bolsista pobretona e sem graça!”, pensou,
despeitada. Abandonou o baile e voltou para casa. Teve um acesso de fúria,
pegou todos os vestidos do armário e rasgou, um por um. Depois quebrou tudo dentro
do quarto. Assustados, os pais chamaram o médico da família às pressas. Ela
simplesmente surtou. Não estava acostumada a perder...
Depois disso, foi embora de Goiânia. Soube depois que a
mandaram estudar na Europa e que casou por lá. Voltou três décadas depois,
viúva e com dois filhos para o inventário dos bens da família, depois da morte
dos pais.
Foi nesse período que ela reviu o Bernardo. Ele acabou se
casando com a Rosa e tiveram três filhos. Numa noite, vi quando a Mariá chegou e
estacionou o carro devagarinho, para depois espiar a casa do Bernardo, pelo lado de
fora da janela. Eu morava na casa ao
lado e vi quando ela olhou os quatro felizes, às gargalhadas, enquanto jantavam.
Deu para ver as lágrimas escorrendo do rosto dela. Ficou alguns minutos ali, escondida
atrás da fresta da cortina, antes de enxugar o rosto e se apressar em ir
embora.
Foi a última vez que a vi, de longe. Ela e os filhos partiram no dia
seguinte e nunca mais voltaram para essas bandas.
Pois é, foi assim que tudo aconteceu... Naquela época,
os Maricá mandavam e desmandavam por aqui... Lá se vão mais de 60 anos, mas eu
me lembro de tudinho, tim-tim por tim-tim! Por que só contei agora? É que existem
coisas nessa vida que é melhor nem lembrar, para não sofrer...
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